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UM REI NA RUA ARREBATADOR

por Alexandre Mate

   Naquilo que se pode considerar como campo que abriga pesquisas, estudos e reflexões teóricas acerca das formas representacionais e populares de cultura reinam considerações de preconceito e de desconhecimento, silêncios e silenciamentos, descasos e desconsiderações… De fato, e dentre outros motivos, gente que se acredita “poderosa” (nas
mais diferenciadas instituição da vida, em todos os momentos da histórica), jamais gostaram de gente irreverente, propensa às criações paródicas, tendentes – em graus diferenciados – ao deboche, ao escárnío e às “deselegâncias” do corpo, da fala, do realizar, de classe.
   Historicamente, mesmo sem estudar ou pesquisar seriamente sobre as manifestações populares de cultura, padres e pastores, juízes e juízas, gente da política, da cultura – e não apenas da chamada “de elite”, professores e professoras não gostam das manifestações e procedimentos ancestrais. Nesse sentido, esse tipo de gente, e sempre que pode, tudo faz para reverter e cooptar as crenças conviviais de quem se encontra do outro lado da margem.
Nossos críticos e críticas acadêmicas, invariavelmente, declinam da responsabilidade de estudar e conhecer. Nesse sentido, há um permanente transitar com rótulos facilitadores e postergadores do trabalho de pesquisa consequente.
   Enfim, temos de promover sempre grandes esforços para conhecer o que veio e foi produzido antes de nós, sobretudo em razão da ausência de registros documentais… O mais incrível, apesar disso é que os/ as artistas sem dar traços à bola a certo tipo de gente (e apenas desejando “o leite mal na cara dos caretas”) segue sua sina e sua estrada,
ressignificando tradições e fazeres populares.
   O Bando Goliardis (não sei se o nome decorre de goliardos, tipo de artistas e gênero repleto de escatologias ou palavrões), da Zona Norte da cidade de São Paulo, selecionado a figurar da 6ª edição da “Mostra de Teatro Heliópolis: a Periferia em Cena”, apresentou-se na travessa da rua Merici, em Heliópolis, na ensolaradíssima tarde, do dia 03 de setembro de 2024.
   Organizado o espaço de apresentação em proposição frontal, o harmoniosíssimo coletivo, formado por 4 artistas Dani Marin, Marcelo Rôya, Sabrina Motta e Tiago Cintra), deve ter adotado tal relação espacial em razão de o espaço de apresentação ser bastante estreito. Entretanto, mesmo no apertado local, a alegria e potência espetaculares do coletivo caracterizou-se em um lindo momento.
   Em tese, o Rei na Rua tomou como ponto de partida o conto de tradição popular, cujo sentido fundante concerne ao uso de estratagemas táticos para vencer a opressão dos poderosos, recontado por Hans Christian Andersen. No texto de Andersen, conhecido como Roupa Nova do Rei que, dono de vaidade ao paroxismo, é engano por malandros que o 
vestem com roupa inexistente. Há múltiplas e significativas diferenças entre ver e enxergar. O rei, como qualquer outro sujeito daquele reino, não vê nada, mas enxerga um traje confeccionado com um lindíssimo tecido. Na literatura e no teatro muitos são os textos que se fundamentam em tal mote, quer seja, enxergar pelos olhos e dizeres dos outros…
Especialmente, e recomendei ao coletivo que lessem o maravilhoso texto teatral de Miguel de Cervantes, chamado O Retábulo das Maravilhas. Calixto de Inhamuns e Gabriela Rabelo adaptaram o texto do maravilhoso criador espanhol e, na obra, uma trupe de 3 artistas (um casal e uma criança) aplicam o golpe de que em uma tela (lençol) só conseguiram ver as cenas os puros da aldeia. À noite, na praça, as narrativas do trio apresentam cenas fantásticas em um lençol branco.
   Desde o aquecimento (artistas tocam instrumentos de corda, de sopro e de percussão) o conjunto criador, cuja encenação é de Marcelo Rôya e Sabrina Motta, apresenta uma obra repleta de excelentes, teatrais e populares expedientes, com malabares e paródias de músicas de sucesso. A narrativa original de Andersen foi dividida em curtos episódios com determinação épico-teatralista com autonomia, em si e em conjunto. O público que assistiu à obra – e independentemente da idade, em razão de a obra atender a todas as faixas etárias – acompanhou com grande interesse e alegria; sendo que a criançada ficou eletrizada.
   Ao final, e como precisa e costuma ser, sobretudo no teatro popular de rua, o coletivo risca o chão histórico em que se encontra e aponta causadores das mazelas, os apologistas do ódio e genocidas da cloroquina De todos os destaques da obra, louvo a atuação impecável de Marcelo Rôya: um ator em maravilhoso em seu mais intenso momento de potência e criação.
   Lindo momento e lindo espetáculo! Salves à cultura popular! .


  1. Nascido em Vila Anastácio (bairro operário da Zona Oeste da cidade de São Paulo); Mestre em Teatro e doutor em História Social (ambas as formações) pela USP; professor do programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp; pesquisador e autor de textos sobre as práxis teatrais.